23 fevereiro 2006

Sarajevo, 26 de Dezembro de 1992

Sarajevo, 26 de Dezembro de 1992

Querida Tia,

Não te escrevíamos há séculos porque nada, nem sequer um pássaro, podia entrar ou sair de Sarajevo. O aeroporto foi encerrado, bem como a estrada de Kiseljak, onde os combates têm sido ferozes – tudo isto significa que nem uma grama de comida entrou em Sarajevo. Parece impossível que ninguém nos ajude, não podemos acreditar. Há tiroteio por todo o lado e mesmo os que estão “do nosso lado” castigam-nos ao nada nos trazer para comer. Mas já ninguém consegue pensar com sensatez e seja o que for que venha a suceder temos que o aceitar pois não temos alternativa. Por aqui a situação não muda e o mais insuportável de tudo é que nada mexe. Estivemos sem água e electricidade durante três semanas. Foi terrível. No Verão não demos tanta importância à situação, estava calor e os dias eram longos, mas agora faz muito frio. O frio vai direito aos ossos mesmo que vistas três camisolas, três pares de meias e três pares de calças. Pessoas vagueiam como zombies, andam pela cidade mexendo em caixotes do lixo, buscando água e lenha. E já ninguém parece reparar nas explosões à nossa volta ou nas balas dos snipers, pois só uma ideia atormenta as pessoas: alimentarem-se e aquecerem-se. Todas as árvores da cidade, em todos os parques, avenidas, cemitérios, foram cortadas; assim, além de ser uma cidade bombardeada e queimada, seremos também uma cidade sem árvores. E ninguém mexe um dedo. Nos hospitais, velhos e crianças sofrem atrozmente com o frio pois não há cobertores suficientes nem mesmo para eles. É terrível, terrível. Há momentos em que penso enlouquecer e interrogo-me como é que outras pessoas arranjam forças para continuar...

Nadira

In “Letters from Sarajevo – Voices of a besieged city”, de Anna Cataldi, Element Books, 1994. (Tradução da versão inglesa: “Santos da Casa”.)